LOCAL DO ÓCIO criação: Osmar Batista Leal

" Todo alimento sadio se colhe sem rede e sem laço"
( William Blake)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Texto 4 ( Pálidas' drinks - parte 4)



      “For if we don’t find the nest whiskey bar
       I tell you we must die”

       ( The doors)



      De um canto ao outro, atravessei o interior do Pálidas’ drinks. A atendente, nem me viu passar perto do balcão. Estava concentrada na novela. Fui sem nenhuma pressa.   
      Minha aproximação não fez nenhuma diferença. A moça da mesa do canto continuava olhando para baixo. Seus cabelos estavam soltos nos ombros. Apesar da sua falta de movimento e entusiasmo, percebi que ela notou a minha chegada.
      -Pague uma dosinha pra mim, cavalheiro!
      Eu já ouvira tantas vezes essa palavra. Só que não recordava exatamente em quais filmes.  
       -Gosta de cinema? –perguntei, enquanto sentava-me. A moça apoiava seus braços sobre a mesa.   
       -Vai pagar uma dosinha pra mim cavalheiro? -disse novamente, a moça, sem levantar os olhos e sem sorrir. Tive a impressão de que o sorriso que me chamara até aquele canto da casa fora apenas produto da minha imaginação.
       -Posso sentar-me ao seu lado? -na verdade, eu já estava sentado na cadeira ao lado.
       E mais uma vez, a moça de cabeça abaixada pediu:  
       -Posso pegar uma bebidinha, cavalheiro?
       A mulher não tinha me respondido se gostava de cinema ou não, mas insistia em me chamar de cavalheiro. Isto me fez continuar o assunto:
      -Que tipo de filme você gosta ?
      -Detesto filmes de terror... Gosto  de filmes românticos.
      -Como você pode decapitar o terror do corpo de um filme romântico?
      Acho que o que falei foi totalmente incompreensível. Ela parou até mesmo de pedir a sua dosinha.  
      -Se você quiser eu chamo outra menina para conversar com você, cavalheiro!
      Mas havia uma melancolia em sua aura que me acomodava naquela mesa. Eu queria girar um pouco em torno dela, assim como uma mariposa perto da lâmpada acesa.
      -Pode pegar uma dosinha! Eu espero aqui.
      No máximo, a moça gastou um minuto , para ir ao balcão e voltar a sua cadeira. Trouxe uma pequena taça. Um copo tão pequeno que Libertina teria consumido todo o seu conteúdo antes de retornar à mesa.
      -Obrigado, cavalheiro? –disse, a moça, após beber o primeiro pequeno gole.  
      Eu havia me acomodado ali, porém não sabia o que falar...
      -Já assistiu o filme  “O pai da noiva”?
      -Não quer beber alguma coisa também? –ela perguntou, com o olhar fixo no pequeno copo.
        -Não, não...
        -Se quiser. Eu vou buscar uma cerveja para você.
        -Não, não. Obrigado!
        -É muito, estranho!
        - O que é estranho?
        -Você ficar aí me olhando, sem beber nada!
        Realmente, Não havia nenhuma coerência em nossa conversa. Talvez fosse melhor eu me afastar. E voltar a pensar em Libertina!
        -Por que você ficou tão quieto, cavalheiro? Em que está pensando?
        -Não se preocupe comigo. Só vou esperar a chuva passar e já vou embora .
        -Você é feliz!
        -Eu? Aonde você está vendo a minha felicidade?
        - Porque você pode ir embora  quando a chuva passar!
        -E você não pode sair daqui ?
        -Eu não!
        -Por quê?
        -Porque eu não posso!
        -Por que você não pode?
        Aquela moça não consumia a bebida ansiosamente  como Libertina. O copo ainda estava quase cheio. Mas, por um momento,  percebi que a conversa estava fluindo.
      -Se está mesmo interessada em sair daqui, eu posso ajudá-la.
      -Não. Você não pode me ajudar, cavalheiro. Ninguém pode me tirar daqui.  
      -Eu só tenho esse guarda-chuva, mas... (Lembrei que já havia percebido lá na outra mesa que perdera o guarda-chuva) Talvez possamos chamar um taxi. 
     Ela  Levantou-se da cadeira, sem levantar a cabeça e disse nervosamente:
      -Você é muito estranho! Eu já disse que não posso sair daqui ...      
      Pensei em sair dali, voltar para a outra mesa, ou ir embora, mas a chuva não havia cessado e então resolvi insistir na conversa mais um pouco. Veio-me à lembrança algo que eu havia visto que talvez pudesse caber dentro do romântico fragmentado que ela gostava.
      -Na semana passada eu fui ao cinema. Há uma cena de  Chris Hemsworth, o ator que interpreta Thor,  com  Natalie Portman que você vai gostar. Se quiser ir comigo, eu até suportaria ver o filme   de novo!
      Ela ignorou o que eu falei sobre Thor . Pegou a pequena taça, bebeu tudo o que havia dentro em apenas um gole , sentou-se novamente e disse:
      -Vai embora, cavalheiro... Ou vai pedir mais uma dose para mim?
    Um pouco sem jeito, eu respodi:
      -Se não quiser me acompanhar, eu entendo. Mas pelo menos me diga por que você não pode sair daqui!
       E ela perguntou mais uma vez:
      -Vai pagar mais uma dosinha? 
   Continua...
     

Texto: Osmar Batista Leal

   
 
   












       - 
       
        























terça-feira, 15 de novembro de 2011

Texto 4- (Pálidas' drinks - parte 3)

                    
   “His brain is squirming like a toad”
   (The doors)


    Como das outras vezes, que estive ali dentro, eu não estava bebendo nada. A mulher que assistia a novela atrás do balcão era a mesma das outras noites. As mesas e as cadeiras também eram as mesmas. Mas, no todo, o local parecia não ser o de sempre. Talvez fosse porque "em todos os lugares tudo está em movimento. É impossível estar duas vezes na mesma zona..." Ou simplesmente porque Libertina não encontrava-se mais na casa. Eu lembrava do dia em que ela me contou sua história, como se ela ainda me contasse.  
      -Conheci o meu príncipe encantado aos treze anos. O João Piqueno era o cara maior da minha sala. O que batia em qualquer um...
  Foi exatamente com esse vocabulário que Libertina começou a sua narrativa.  
    - Eu também já tinha reprovado algumas vezes a quinta série, mas o João Piqueno batia o recorde. Cinco anos na mesma série.  Ele já devia ter quase dezoito quando nos conhecemos na sala de aula...
      Enquanto a mulher assistindo a novela não mandava ninguém vir me atender eu  relembrava o relato da menina que não fazia mais parte do quadro do Pálidas’ Drinks:
       - Ele começou a surrar, na saída do colégio, todos os caras que se aproximavam de mim. Eu me sentia totalmente protegida...
      Pensei em levantar dali, ir até o balcão, dizer boa noite à atendente que via televisão, e perguntar se tinha água mineral! “Por que você não bebe cerveja?” Perguntou-me Libertina, uma vez,  no dia em que eu falei de fazer isso." Ficava melhor se você  bebesse alguma coisa alcoólica.”
      -Minha mãe insistia para que eu cuidasse mais dos estudos , mas larguei de tudo. Da escola, do cursinho de infomática, e fui morar com o João Piqueno no fundo da casa da mãe dele...
         O que havia de tão estranho em eu ir lá no balcão e pedir uma água mineral? Eu gostava de beber vinho, mas não ali. Tinha medo de ficar bêbado , perder todo o dinheiro e ir embora sem aproveitar nada... Mas o que eu ainda tinha para aproveitar, se Libertina não existia mais?
          -O nosso amor durou uma noite. A partir da segunda o João Piqueno começou a chegar em casa muito louco. Queria que eu contasse quem eram os carinhas que passavam na rua e mexiam comigo...
        Um homem despediu-se da mulher com um longo abraço. A  mulher o acompanhou até a porta. Ao voltar ela olhou em minha direção. Lá fora a chuva estava muito forte. Ouvi os passos do homem que saiu correndo até seu carro.
         -A cada noite que passava o João Piqueno chegava mais tarde e mais louco. Era difícil de convencê-lo de que ninguém estava mexendo mais comigo. Ele queria voltar para a rua. Brigar com alguém. Tinha saudades do tempo em que estudava...
         Imaginei que a mulher que levou o seu homem até a porta iria perguntar se eu queria companhia, mas ela olhou apenas para a minha mesa. Depois, preferiu desaparecer do salão. Entrou numa porta que deveria levar para o seu quarto.    
         -Depois que tive um filho,  o João Piqueno convenceu-se que era loucura da cabeça dele achar que tinha uns carinhas olhando para mim. Ao invés de continuar querendo brigar com alguém,  começou a me bater. Não suportei mais. Achei melhor catar o João Piquiininho e irmos morar com a minha mãe... 
         Dois caras entraram no Pálidas’ e foram direto até o balcão. A atendente perguntou se eles queriam Kaiser ou Skol. Nesse instante a mulher que havia entrado no quarto voltou junto com uma amiga e as duas levaram os dois até uma mesa no canto da casa.  
       -A mãe ajudava a cuidar do  João Piquininho, mas o meu pai não gostava nem um pouco da criança. Dizia que era a cara do pai. E que  quando o João Piquininho crescesse iria ficar tão briguento quanto o João Piqueno. Desde pequeno já tinha uma cara invocadinha. Cada vez  que eu e o  pai discutíamos , ele me jogava na cara que...
      Quando ela chegou nessa parte da história, começou a chorar outra vez e jogou todo o resto da bebida debaixo da mesa, como vinha fazendo aos poucos.
       -Por que está jogando a bebida que eu paguei para você? –Eu perguntei.
       -Eu sabia que você não ia prestar atenção na minha história.
       - Eu prestei atenção... Mas eu só não entendo porque você joga a bebida que eu pago.
       - Porque você é um cara legal. O último cara com quem fiquei pagou quinze garrafinhas de Keep Cooler e fez eu beber tudo...
        E então ela disse que eu era um cara legal. E eu achei legal a maneira como ela falou que eu era legal e... Voltei conversar com Libertina mais três sábados consecutivos. No quarto  resolvi salvá-la dos Keep Coolers. Ela aceitou pegar seu filho e irem morar comigo. Libertina dizia que gostava de mim, mas não acostumava-se com o ambiente da minha casa. "Eu deveria  comprar uma televisão". Nem o João Piquininho, deixava muito tempo lá. Sempre que eu ia trabalhar ela levava o filho para a mãe cuidar. Libertina ficou morando comigo até o dia em que... Tudo acabou...  Aonde foi que eu deixei a minha faca suja de sangue ?
      Minhas lembranças me levaram para um ponto insuportável onde precisava esquecer um pouco Libertina para não enlouqucer... Afinal ela não existia mais.
      Resolvi olhar  para uma outra direção. O interior do Pálidas’ Drinks era muito espaçoso. Havia alguns cantos que eu ainda não conhecia. Num deles eu vi uma mulher sentada sozinha. Ela acenou com a mão para mim e pareceu sorrir, como se já me conhecesse. Talvez fosse nova ali, mas já tivesse conversado comigo em outras casas. Eu ia muito em uma casa lá no Pinheirinho também...Não pude ver direito quem era quando fixei meu olhar.
       Pensei em ir até lá. Levantei-me. Talvez ela não saísse do lugar quando eu me aproximasse, mas  continuou com a cabeça abaixada.         
            Continua...
     Texto: Osmar Batista Leal

   

  

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Texto 4 - ( Pálidas' drinks - parte 2)



PÁLIDAS’ DRINKS

II

  “girl you gotta love your man”
    ( The doors)


    Lá fora a chuva aumentava, mas ali dentro parecia estar mais quente do que da última vez que visitei o local. Procurei uma mesa que ficasse  num canto afastado dos outros homens que bebiam suas cervejas.  Enfim, sentei-me para descansar o corpo. Porém, mentalmente, eu não conseguia relaxar.    
     “Na gaveta da pia? Debaixo do fogão? Atrás da geladeira? Ou será que eu fui pro quarto e escondi sob o colchão? Eu não consigo lembrar onde eu larguei a faca suja de sangue.”
  Observei as poucas mulheres que havia ali dentro naquela noite de chuva, tentando me esquecer dos pensamentos ruins. Nem uma delas notou a minha presença. Cada uma já bebia, acompanhada. A mulher    atrás do balcão que assistia a novela não parou de ver televisão  para  perguntar o que eu queria.
    “Se Libertina ainda estivesse aqui, me trataria de forma diferente... Porque ela não era igual às outras... Não era até que... Por que ela fez isso comigo ? Por que eu tive que fazer isso a ela?”   
       Logo, comecei a lembrar do dia em que entrei no Pálidas’ drinks pela primeira vez. Libertina veio, prontamente, me atender:
     -Oi  !
     -Oi -Respondi, com a cara fechada. Mas ela sabia exatamente o que eu vinha comprar . Um pouco de alegria.    
     - Você quer companhia? –Ela perguntou a mim
     - Você quer tomar uma dose? –Eu perguntei a ela.
     - Paga um Keep Cooler?
     - É claro.
     A garrafinha custava vinte reais, mas ela valia muito mais do que isso. Virou-se e foi até o balcão. Depois voltou com uma garrafinha, já pela metade. Não trazia copo.     
      -Você quer que eu sente bem pertinho de você ? –Ela disse para mim.        -Quero que você sente no meu colo! –Eu disse para ela.
      Delicadamente, ela sentou-se  onde eu sugeri. Bebeu mais um gole no gargalo e, em seguida despejou um pouco da bebida  debaixo da cadeira onde sentávamos.
     -Como é o seu nome?  
     - Libertina. E o seu?
     -Valdevino!             
     Ela riu. Bebeu novamente, despejou mais  bebida no chão e disse:
     -Bonito nome. O que quer dizer?
     -Não sei... Faz quanto tempo que você trabalha aqui?
     -Cheguei ontem ... Mas eu já trabalhei em várias casas.  
     -Veio de onde?
     - Você conhece alguma casa lá no Pinheirinho?
     - Várias. Mas eu nunca te vi lá.
     - Eu só fiquei duas noites!
   - Então é por isso. Faz três dias que não apareço para aqueles lados... Quantos anos você tem?
     -Estou completando dezenove, hoje!
     -Então quer dizer que está fazendo aniversário hoje?        
     - E o que tem isso?
     Sem saber o que responder, comecei a cantar:
   -Parabéns pra você, nesta data querida. Muitas felicidades, muitos anos de...
     Ela não gostou. Levantou-se do meu colo, sentou na cadeira ao lado e começou a chorar.    
       -Desculpe-me! –disse eu.
   -Não tem problema! -respondeu ela olhando para baixo enquanto despejava mais  bebida debaixo da cadeira.
       -Mas o que foi que eu fiz de errado?
     -Fui eu que fiz. Eu estraguei a minha vida... E você cantou como se estivesse me ironizando...
       -Não. Eu não estava. Eu estava cantando sério... Mas o que tem a sua vida?   
       - Não adianta eu contar. Você não vai me entender.
       - Mas pelo menos eu gostaria de escutar você.
       - Tem certeza?
       -Sim.
       Ela largou a garrafa sobre a mesa, levantou a cabeça, olhou-me nos olhos e disse:
       - Tem certeza que você quer mesmo me escutar? 
    De repente minha memória foi interrompida pelo barulho da chuva. A chuva que me acompanhara até ali, transformava-se la fora em tempestade. "Onde larguei o meu guarda-chuva"-pensei. 
    Continua...
       
   Texto: Osmar Batista Leal

    CONTINUA...




 

   









quarta-feira, 2 de novembro de 2011

texto 4- (Pálidas' drinks - parte 1)





  
  “If you give this man a ride
   Sweet family will die”
   ( The doors)


     Era uma noite normalmente fria quando eu a encontrei na rua. Ela estava esperando ônibus num ponto qualquer de Curitiba. Do céu, descia uma garoazinha tão fina que nem chegava a molhar direito. Eu até estava com meu guarda-chuva desarmado ao me aproximar.
      Estalou os seus olhos como se eu fosse assaltá-la. Mas eu apenas atirei naquela mulher parada, algumas palavras, minhas mesmas:
     -Você aceitaria passear comigo de mãos dadas sob o perfume das flores que nascem no cemitério?
     Ela não me respondeu. Continuou me olhando dos pés a cabeça. Seus olhos queriam ter certeza de que eu não escondia nenhuma faca ou revólver por dentro da roupa. E eu continuei perguntando:
     -Você aceitaria beber comigo uma taça de Campo Largo envenenada?
     O susto inicial havia tranqüilizado-se. Restava, em seu rosto, o medo que a impedia de me responder qualquer coisa:  
     -Você gostaria de deitar-se  ao meu lado, para sempre, enquanto aqueles que permaneceriam neste mundo de sofrimento, nos brindariam jogando coloridas flores sobre a nossa derradeira cama sepulcral?
     Dei uma pequena pausa para, talvez, uma resposta. Não houve.  
     -Enquanto teus lábios carnudos me dizem não, teus olhos virginais também não me dizem sim...
      Nesse instante vi uma luz refletir no rosto daquela mulher. E ela movimentou-se. Colocou uma das mãos na abertura da bolsa e preparou-se para subir.
      Os faróis de um ônibus surgiam iluminando a rua escura. O Interbairros 4 parou, abriu suas portas e estendeu seus degraus para a mulher que o esperava ansiosamente.
     Mesmo sem ouvir nada de sua boca, eu disse boa noite e fui me despedindo para sempre:  
     - Até nunca mais, virgem dos lábios de fogo.
     Deixei-a para que fosse engolida pelo ônibus. Saí dali a procura de outros lábios nos quais pudesse me refugiar. O carro verde a levou para junto de seus outros passageiros e eu voltei a perambular sob a escuridão da atmosfera  chuvosamente fria.  
      Quando a rua parecia não ter mais fim, uma porta iluminada, como sempre, apareceu. Acelerei as passadas em direção à boca que me recolheria. E, com muita ansiedade,  eu me aproximei da porta. Sem nem mais me preocupar se alguém estava vendo o que eu estava fazendo, entrei. Feliz como quem cumpre um ritual; outra vez eu estava dentro. Eu pisava no interior do Palidas’drinks.

   Continua...

    Texto: Osmar Batista Leal


























     

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Texto 2 (Oferta de natal)




     O carro ia em velocidade constante. A paisagem noturna passava rapidamente pela janela.
     - Mamãe! Lá é o cemitério?
     - Não, meu filho. É uma igreja.
    O carro continuava. Passou pela Igreja. E foi.
      - Mamãe! Lá é o cemitério?
      - Não, meu filho. Lá é uma escola.
     O carro mantinha a sua velocidade. Deixou a escola para trás. E prosseguiu.
     - Mamãe. Lá é o cemitério?
     - Não, meu filho. É uma empresa.
     O carro não parava. Passou pela empresa e continuou em direção a seu destino.
     - Mamãe. Ali é o cemitério?
     - Sim, meu filho. Ali é. Volte para o seu caixãozinho que o carro já vai parar...
     -Por favor, não, mamãe... A senhora vai me deixar aqui... Não, mamãe...
     -Acalme-se, meu filho. Você terá de ficar, mas mamãe promete que não vai esquecer de mandar flores e acender uma velinha para você todos os anos!

   Texto: Osmar Batista Leal


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Texto 3 (O brilho da foice -final)

          
       Estarrecido, Adimirzinho tentou usar outra vez, sua espingarda. Mas, surpreendentemente, esta escapou-lhe dos braços, como se ganhasse vida própria, e elevou-se até as mãos descarnadas da velhinha.
        Não houve tempo para pensar como aquilo fora possível. A velhinha já estava bem na frente de Adimirzinho com o cano apontado para ele. Imediatamente, a "assombração"engatilhou a velha espingarda e, com um sorriso que lembrava a Hebe Cagargo, ela disse, enquanto  começou a apertar o gatilho contra o miserável ladrãozinho de foices valiosas:
        -Gracinha!
     De manhã, quando Lobisomem,  Caapora e Bicho Cabeludo saltaram do beliche e o café não estava pronto, sentiram muita falta de Adimirzinho. Ele não havia retornado da caça. Resolveram pegar suas armas e ir atrás do quarto Rancorgue. 
       Somente depois de duas horas de caminhada, Caapora sentiu um cheiro fortíssimo. Não era cheiro de mato. Logo, todos eles deixaram-se levar pelo odor e , finalmente, encontraram o cadáver de Adimirzinho do Cabelo Cortado. Assim que se aproximaram, algo que parecia um besouro saiu correndo de dentro do seu nariz, como se fosse num filme, e desapareceu.
        Os três ajoelharam-se diante do corpo  e não impediram que lágrimas pingassem. Bicho Cabeludo passou sua mão grossa no rosto sem vida  e disse: 
        -Você descansa, meu irmão. Mas nós, o restante dos Rancorgues não  largaremos das espingardas enquanto não encontrarmos quem te furou desse jeito.
        Levaram o corpo até a cabana e colocaram ele na cama. Procuram a coberta menos suja e puseram por cima. Guanxuma veio correndo lá de fora, latindo lastimosamente e ficou velando  o falecido Adimirzinho. Primeiro, os Rancorgues se vingariam; Depois, enterrariam cadáver , com calma.
        Com as espingardas atentas, vasculharam o matagal, durante a manhã e a tarde, mas  não encontraram nenhum vestígio do assassino.  À noite, com as mesmas armas preparadas, persistiram na busca. Dessa vez, levaram também o coitado do Guanxuma, que preferiria continuar atendendo o morto, mas que com algumas espingardadas no lombo, decidiu ir junto.
      Nenhum dos Rancorgues olhou no relógio,mas imaginaram que já passava da meia noite quando,  viram o clarão fantasmagórico de uma fogueira.
      Guanxuma latiu espavorido e ninguém conseguiu segurá-lo mais. Até  Levou outras espingardadas, o que não foi o bastante para mantê-lo no grupo. Escapou dos caçadores e, em desespero, correu até a cabana.
      Os Rancorgues não se incomodaram muito com a fuga de Guanxuma. O importante era que a busca havia chegado ao fim. Perto da fogueira estava a velhinha de foice nas costas. Só poderia ser ela a matadora.
      -Quietos! Tem alguém lá e está de costas para nós. Vamos atacar – disse Lobisomem agachando-se entre as árvores.
       Fizeram tudo direito. Se aproximaram  sem fazer nenhum barulho, chegaram por trás da velhinha e atiraram os três  ao mesmo tempo. Todos clamavam pela mesma vingança. Caapora furou as costas da velhinha. Bicho Cabeludo disparou na cabeça. Lobisomem acertou no pescoço.
      Contudo, a velhinha ainda virou-se e os encarou. Somente depois de receber no peito as balas das três espingardas é que aquele corpo ressequido caiu em cima do fogo.
      Vingados e satisfeitos, os Rancorgues se afastaram deixando o corpo  a queimar. Perto da  sinistra fogueira,  viram a foice brilhante, na qual não ousaram mexer.
      E assim os irmãos Rancorgues mostraram a eles mesmos que, embora briguentos, eram unidos. Até mesmo na hora de vingar, faziam o serviço juntos.
      Uma hora depois, eles já se encontravam na cabana. Nenhum deles pensou em continuar velando o corpo do irmão. Adimirzinho, morto pela velhinha, já havia ficado muito tempo fora da terra. Então decidiram escolher um lugar atrás da cabana e fazer o enterro naquele mesmo instante.
      Contudo, não tiveram mais tempo de sequer colocar as pesadas mãos no cadáver. Antes que o fizessem, a porta se abriu repentinamente e os três voltaram os olhos esbulhados para ela. Não para a porta e sim para  quem entrou por ela: A velhinha que haviam arrebentado há uma hora atrás.
      A morte se aproximou. A surpresa os manteve indefesos e paralisados. Ela ergueu com as duas mãos sua pesada foice brilhante e de um golpe só decepou três cabeças que rolaram pelo chão da cabana.
      Lá fora, o pobre Guanxuma ouviu as gargalhadas arrepiantes daquela que disse:
      -Ignorantes! Acreditaram ter matado a morte!

               fim
 Texto: Osmar Batista Leal 


     

domingo, 24 de julho de 2011

Texto 3 (O brilho da foice -parte 2)



   
       Na escuridão da noite, Adimirzinho caminhava  ouvindo o som de seus próprios passos e sentindo o cachorro , tremendo de medo, esbarrar em suas pernas.
       O rapazinho  estava sem sono. Aliás, nunca tinha sono à noite, pois enquanto os outros irmãos labutavam em seus ofícios diários, ele ficava em casa para preparar a comida. No entanto, acabava tirando um cochilo. E aí, quando os homens suados e esfomeados chegavam, não encontravam a comida pronta, batiam no miserável até a fome passar.
        Porém, Guanxuma, o cachorro, apesar de estar com sono, morria de pavor. Ele acreditava na história da velhinha, mas obrigou-se a acompanhar o caçador porque maior que o medo era a dor de uma "espingardada"no lombo. Adimirzinho descontava nele a raiva que sentia dos irmãos mais fortes.
        -Guanxuma, esse silêncio está começando a me deixar com medo!  Guanxuma! Quebre esse silêncio, lata alguma coisa !
        O caçador noturno não via nem ouvia nenhum sinal de caça. Quanto ao cachorro, não sabia se seguia atrás do homem ou a sua frente, de tanto medo.
        De repente, brotou um barulho por entre a escuridão . Não se distinguia se algo pulara de cima de uma das árvores ou se saltara de trás de uma moita. Pernas esqueléticas se moviam e um brilho metálico roçava o capim crescido.
        Quando o Rancorgue percebeu, já estava sozinho. O cachorro não tivera a mesma coragem que ele de ficar esperando para ver o que era. Adimirzinho armou sua espingarda e, ainda  gritando com o animal companheiro que fugia, arregalou os olhos, esperando pelo que estava para aparecer.
        -Volte aqui, seu pulguento covarde ! A hora que eu te pegar você vai ver uma coisa... Venha me ajudar a matar esse bicho que está vindo. Deve ser bem grande...
        Algo apareceu. Era uma velhinha que trazia nas mãos uma foice brilhante. E ele, Adimirzinho do cabelo cortado, sem vacilar, meteu o dedo com vontade no gatilho e "carcou" cinco balas no corpo seco da assombração.
         A foice que a velhinha trazia desprendeu-se de seus dedos e penetrou na terra, cortando o capim, enquanto o fantasma caía . Adimirzinho chegou mais perto da velhinha esquelética e passou os olhos espantados pelo corpo estirado.
         -Não é um bicho. É  uma velha... Ou é alguém usando uma máscara daquela apresentadora de programas... Não. Não é alguém usando uma máscara da Hebe Cagargo. É a velhinha que todos temem, e eu consegui matá-la! Eu sou o melhor, o maior caçador! A partir de hoje não me verão mais como um vagabundo. O  coitado que apanha dos irmãos. De hoje em diante  começarão a me respeitar... Mas quem irá crer em mim? Só se eu provar, levando sua foice! É isso! Basta que eu leve e mostre a eles esta coisa brilhante. E além disso, isto deve ter muito valor. É um objeto raríssimo. Seu brilho me conquistará quem sabe, uma fortuna. Se eu conseguir vender, é claro. Mas eu vou conseguir, sim!
         Erguer aquilo nas costas foi um sacrifício. A foice pesava tanto quanto uma dúzia de foices comuns. Era difícil compreender como uma mulher tão magra conseguia carregar aquela arma e assassinar tantos homens. Porém, o peso do objeto não impediu que o caçador noturno se arrastasse dali com a foice cintilante, além de sua espingarda.
        Quando Adimirzinho saiu do  local onde matara a assombração; ou melhor, do local onde acreditara tê-la assassinado, esta abriu os olhos encovados e provou que o ignorante caçador estava totalmente enganado. A velhinha se levantou rindo e com voz rouca murmurou para o negror da noite:
        -Idiota! Pensa que me matou!
        Logo, as pernas de Adimirzinho vergaram de tão cansadas e ele teve de parar. Jogou a foice e estirou-se no chão largando também da espingarda. A cabana ainda estava tão longe. 
        Por alguns instantes chegou a pensar em esconder a coisa brilhante no mato e ir pedir ajuda aos outros Rancorgues.  Mas, não! Seus irmãos não acreditariam em sua história. E se por milagre, conseguisse convencê-los a vir com ele , ainda teria de repartir a foice com eles.
        Já havia descansado um pouco. Não passaria o resto da noite deitado ali. Se quisesse mesmo fama e riqueza teria de se esforçar. Teria de continuar se arrastando com todo aquele peso sobre si. 
        Mas assim que decidiu levantar e prosseguir, ouviu um assobio vindo de uma árvore. Levantou os olhos e ela estava lá. A velhinha, que matara, encontrava-se trepada no topo da árvore, sorrindo para ele, com os olhos tão brilhantes quanto a foice.          
 Continua...
    (Texto: Osmar Batista Leal)